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Histórias da vida real: «Fui abusada pelo meu padrasto com o consentimento da minha mãe»

31 Março, 2019

Tem cerca de 30 anos, mas uma bagagem de vida enorme. “Maria”, chamemos-lhe assim, teve a infância destruída por quem mais devia amá-la.

Esta história não é fácil. Há nela uma protagonista com uma enorme vontade de viver. Para protegermos a sua identidade, uma vez que os traumas que viveu são muitos e podem colocá-la em perigo, vamos dar-lhe um nome fictício: chamemos-lhe. “Maria”. Mas tudo o resto é real, a história que esta jovem conta à nossa revista é uma verdadeira história de horror.

“Os meus pais separaram- se quando eu tinha apenas dois anos”, começa por contar “Maria”. Ainda que desde bebé vivesse com a mãe e o seu novo companheiro, a situação não a protegeu de um dia ser molestada pelo homem que devia ser a sua figura paterna. “Com dez anos a minha vida tornou-se num inferno. A minha mãe trabalhava fora de casa, tinha horários complicados e, por isso, era o meu padrasto que me ia buscar à escola e trazia para casa. Era suposto ele cuidar de mim, mas aproveitava o tempo para exercer a força para comigo. Era nesses momentos a sós que ele abusava de mim”, confessa a jovem.

“Durante três anos era assim quase todos os dias. Fazia-me coisas das quais nem me quero lembrar. Tratava-me como lixo e fazia o que queria de mim. Era um horror viver aquilo. Quando ele me ia buscar eu já sabia o que ia acontecer em casa”, diz-nos em lágrimas.

“Eu pedi-lhe ajuda e ela desprezou-me”

Apesar de durante três anos, “Maria” temer contar o que se passava quando estava sozinha com o padrasto, aos 13 anos a jovem decidiu fazer o seu grande pedido de ajuda. Ganhou coragem e contou à mãe, pormenor, por pormenor, o que o padrasto lhe fazia. Porém, o que menos se esperava aconteceu. “Perdi a vergonha e o medo, sim porque o meu padrasto para além de me violar era violento comigo e ameaçava-me para que eu não contasse a ninguém, mas contei à minha mãe. Contei tudo. Por muito que me custasse dizer-lhe o que o homem com quem ela dormia me fazia, eu disse e no final nem quis acreditar quando ela me respondeu que o que eu queria era chamar à atenção. O meu mundo já não era feliz, mas aí acho que desabou. Se a minha própria mãe não acreditava em mim quem é que ia acreditar?”, recorda.

“Além de não acreditar em mim, a minha mãe contou ao meu padrasto o que eu lhe tinha contado e aí tudo piorou. Aí, ele passou a abusar ainda mais de mim e a ser mais violento física e psicologicamente. Ele vingou-se por eu ter ousado pedir ajuda e a minha mãe deixou que tudo aquilo acontecesse. Eu pedi-lhe ajuda e ela desprezou-me”, diz, entre lágrimas. “Fui abusada pelo meu padrasto com o consentimento da minha mãe, esta é a mais pura verdade”, acrescenta-nos “Maria” muito emocionada.

Vida social era nula

Para além de ter tido uma infância e adolescência completamente diferente do que era suposto e daquela que uma criança normal deve ter, “Maria” teve de criar barreiras, sobretudo na convivência com os outros.

“Eu era aquela miúda que usava mangas compridas mesmo quando estavam 30 graus na rua. Eu não podia mostrar pele a ninguém porque as marcas eram visíveis e iam perguntar-me o porquê das mesmas e eu não ia poder dizer a verdade. Sentia que ninguém me podia ajudar, porque ao fim ao cabo se a minha mãe não tinha acreditado em mim…”, diz. “Na faculdade todos se perguntavam do porquê daquela minha atitude, eu desconversava sempre. Praticamente, não tinha amigos. Não me sentia confortável para isso e o meu padrasto também não facilitava”, assume. “Quando fui para a faculdade, como estudava e trabalhava aproveitava sempre para chegar a casa o mais tarde possível. Só assim evitava que ele me voltasse a tocar. Quanto mais tarde eu chegasse a casa, menores eram as possibilidades dele me fazer mal”, assume.

Ida a tribunal

Porém, um dia, quando menos esperava, “Maria” viveu um verdadeiro terror no meio da rua. “Lembro-me de estar no carro, vinha da faculdade e vi que o meu padrasto me estava a perseguir. Completamente desvairado, ele intercetou o meu carro e obrigou-me a sair. Comecei a gritar por ajuda e a fugir e perdi os sentidos. Já só me lembro de acordar com um GNR a perguntar se eu estava bem”, recorda.

“Fui até ao posto, fiz queixa e saí de casa”, conta. Mas nem com uma queixa formal e a ida a tribunal a vida de “Maria” mudou. “Mais uma vez, a minha mãe ficou contra mim. Ficou do lado o meu padrasto, um homem que nem a ama, caso contrário não faria o que fez à filha dela”, assume. “Com a minha própria mãe contra mim não consegui provar nada. Não fui ajudada por ninguém. Comecei a minha vida do zero. O tribunal não ajuda as vítima”, diz. “Por exemplo, eu só tenho ajuda psicológica porque a procurei, por conta própria”, assume.

“Para mim nenhum homem valia nada”

Apesar de em tribunal o padrasto não ter sido condenado, “Maria” conseguiu libertar- se do terror que viveu durante mais de dez anos. “Deixei para trás tudo e comecei do zero. Felizmente, conheci o meu atual marido. Aliás, já o conhecia. Eu e o ‘Miguel’ (nome também fictício) fomos colegas.

Reaproximamo- nos quando saí da casa da minha mãe e começámos a namorar”, conta-nos. “Demorou muito tempo até que eu conseguisse viver com ele uma relação normal, porque os traumas ligados aos homens eram muitos. Para mim nenhum homem valia nada. Todos eles eram monstros. Mas o ‘Miguel’ mostrou- -me que não é assim. Ele ama-me e respeita-me. Aceita e ajuda-me com o meu passado”, afirma “Maria”.

“As idas à psicóloga também ajudaram. Mas o ‘Miguel’ é incrível. Tem muito cuidado comigo.
Por exemplo, se discutimos ele mete sempre as mãos atrás. Sabe que se gesticular muito eu vou assustar-me e entrar em transe. Tudo o que é violento assusta-me”, afirma. Entretanto, “Maria” e “Miguel” acabaram por casar- se. “Foi um momento muito especial, mas doeu muito não ter lá ninguém da minha família. O casamento foi há quatro anos e eu não podia pedir um marido melhor. Ele tem sido uma  salvação na minha vida. E agora deu-me o meu bem maior, a minha filha, a quem eu nunca vou permitir que nada corra mal”, assume “Maria”.

“Nenhuma criança merece viver aquilo que eu vivi, sofrer como eu sofri às mãos de um homem que não vale nada e até mesmo de uma mãe que prefere ficar do lado de um homem assim do que da filha. Se alguma criança alguma vez vos disser que é abusada, por favor acreditem, ajudem”, pede a todos “Maria”. “Tentei muitas vezes pôr termo à vida, só não tive coragem; que ninguém deixe que isso aconteça a mais ninguém, mais ninguém”, acrescenta, muito emocionada.

Texto: Catarina Martins; Fotos: Paula Alveno

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